Rádio Freamunde

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sábado, 7 de agosto de 2010

Coisas do dia-a-dia:


Temos por hábito nunca assumir as nossas responsabilidades e debitá-las aos outros. Há um acidente de viação, se o piso da estrada se encontra bom, dizemos que devia estar mau, para não dar azo a grandes velocidades e com isto evitar acidentes, se está mau, dizemos que foi derivado ao seu estado.
Vem isto a propósito de há uns anos ter umas cólicas renais e depois de consultar um médico de Urologia, no hospital da Trofa, depois de vários exames, fui aconselhado a ser internado e fazer umas sessões de litotrícia, como não ficou resolvido, fui novamente internado.
Como não passava, constantemente tinha crises, o médico disse-me que tinha de fazer um exame que eu achava difícil e sempre me neguei. Mandou fazer uma TAC e quando o fui mostrar notei nele uma fraca expressão facial. Perguntei, é cancro? Disse-me que as probabilidades para isso apontavam e notei nele um sentimento de culpa. Disse-lhe. Doutor se aqui há um culpado, o culpado sou eu. Fui sempre um mau doente e não quero que o doutor fique com esse sentimento de culpa. Notei que estas palavras lhe tocaram no fundo do seu íntimo.
Disse-lhe que estava farto de gastar dinheiro - o hospital era particular. Passou-me uma carta para a minha médica de família, passado pouco tempo tinha uma consulta de Urologia no Instituto Português de Oncologia no Porto.
Nessa consulta fiz-me acompanhar pelos exames médicos. O médico, Dr. Victor, disse-me que tudo provava ser um cancro mas ia ter uma reunião com os seus colegas e depois chegavam a uma conclusão.
Foram marcadas umas ressonâncias magnéticas e nova consulta. Como gosto de chegar cedo, antes prefiro esperar que chegar tarde, enquanto esperava pela consulta noto alguém sentado numa cadeira de rodas a apontar na minha direcção. Como havia várias pessoas atrás de mim na sala de espera julgava que os gestos não eram dirigidos a mim, só há terceira vez, é que notei que realmente eram para mim. Pela fisionomia julguei que era um colega de ultramar, a quem chamávamos o “Landim”, quando me dirigia para ele a uns dois passos de distância vejo uma senhora, aí noto que era um casal da minha terra, fiquei sem palavras. Usei umas desculpas mas sei que não me saí bem, estava tão desfigurado que não dava para o reconhecer.
Nessa consulta ficou decidido que era cancro e que ia fazer vários exames e ser marcada a operação.
Havia um colega meu que me dizia que tinha um vizinho, também o conhecia mas só de vista, que estava desenganado, tinha um cancro nos pulmões. Um dia fui fazer análises, fui tomar o pequeno-almoço à cafetaria do IPO, juntamente com a minha esposa, vejo esse indivíduo acompanhado com a sua, a beber uma garrafa de água e bem-disposto. Quando cheguei à terra disse a esse meu amigo o que tinha presenciado e que não devia de ser como diziam.
Passados quinze dias fui ao funeral dos dois, do que não reconheci e deste, morreram no mesmo dia.
No IPO somos tratados com um carinho que dá a impressão que realmente estamos em fase terminal de vida. Comigo aconteceu várias vezes, era na recepção, quando éramos chamados para a consulta, nas análises ao sangue, no raio X, em todo o lado. Antes da operação fui a várias consultas, com a médica anestesista, com a enfermeira que nos explicava como iam decorrer as coisas, um sem número.
A minha filha tinha conhecimentos com certas pessoas que trabalhavam no IPO, de vez em quando, recebia chamadas telefónicas e saía da minha beira dando-me a entender que não queria que eu ouvisse as conversas. Se andava desconfiado de algo mau, pior ficava, absorvia tudo dentro de mim, não desabafava com ninguém.
A minha esposa andava que não sei como explicar, parece que tínhamos receio de falar no assunto. Um dia não aguentou e começou a chorar em alto tom. Disse-lhe que com aquela atitude me punha ainda em maior sofrimento. Tive uma consulta com o médico cirurgião para ser marcada a operação. Nesta consulta, a uma sexta-feira, disse ao médico que estava convocado para me apresentar na terça-feira seguinte no tribunal de Santa Cruz, na Ilha da Madeira, tinha a viagem de avião em reserva, e que tinha de decidir até ao final da tarde com a agência de viagens. O médico disse-me que era para na quinta-feira seguinte fazer uns exames e depois ser operado, como dava pouco tempo para estar na Madeira, ficava para a outra quinta-feira e assim gozava mais uns dias.
Fiquei perplexo com a maneira do médico falar que lhe disse. - Sr. Doutor, este meu interesse é devido a que tenho um irmão na Madeira, matava saudades com ele e com amigos que lá deixei, mas primeiro está a minha saúde. Disse-me - boa viagem e goze bem.
Se andava desconfiado ainda mais fiquei. Para mais e depois de ter pago a viagem recebo uma chamada telefónica do tribunal de Santa Cruz a dizer que o julgamento tinha sido adiado.
Fui para casa. A minha esposa juntamente com a minha filha estavam a fazer as malas para ao outro dia levar. Disse-lhes para as desfazer que não ia que o julgamento tinha sido adiado. Diz-me a minha esposa e a minha filha. Estavas a contar de ir se fosse a ti ia na mesma, vais e matas saudades. Cada vez mais desconfiava.
No dia 3 de Dezembro de 2007 de manhã, apresentei-me no IPO, para ser operado. Fiz análises ao sangue, fui chamado a uma médica, para ser preparado psicologicamente para a operação, às onze horas e trinta minutos dei entrada no quarto. Estava lá um sujeito à espera de ter alta, o quarto é de duas camas, vieram as enfermeiras fazer as últimas formalidades como rapar os pêlos na zona que ia ser operado e disseram-me que nessa noite não jantava.
Pelas oito horas vieram-me buscar para a sala de operações, o companheiro de quarto desejou-me felicidades. Chegado a um local vejo várias camas, também com doentes, pergunto se eram todos para serem operados. Disseram que sim e para não me preocupar que havia várias salas de operações. A minha curiosidade era devido a que já tinha sido operado na Ordem do Terço, no Porto, e fiquei com a impressão que só havia uma sala de operações.
Na sala de operações estava a médica anestesista acompanhada por várias enfermeiras a tentarem confortar-me, uma delas perguntou-me de onde era, disse-lhe que era de Freamunde. Disse-me que era de Carvalhosa, uma freguesia, que faz fronteira com a minha e que tinha familiares na minha terra que depois de me dizer quem eram, disse-lhe que os conhecia.
Nestas alturas bem não queremos mas, há sempre uma lágrima mais atrevida que nos escapa dos olhos. Lembrava-me da minha esposa, dos meus filhos, da minha nora, dos meus netos, Duarte e Diogo, primos entre ambos, dos meus irmãos e dos meus pais lembrava-me mas já tinham falecido.
Acordei na sala de recobro. A minha esposa estava a visitar-me, tinha de ser pouco tempo, a seguir foi a minha filha, passado um bocado vejo-a estendida no chão. Ia para chamar os enfermeiros já eles lá se encontravam, dizendo-me que tinha desmaiado, para não me preocupar já se encontrava bem. Gente boa, do melhor que aparece.
Passado um dia levaram-me para o quarto. À tarde entrou outro doente acabado de ser operado, era boa companhia. Ao outro dia pus-me a pé para desfazer a barba, não conseguia tomar banho sozinho. Apareceram as funcionárias para fazer as camas e arrumar o quarto, uma perguntou-me se tinha tomado banho, disse-lhe que não conseguia. Disse-me que ia buscar uma cadeira de rodas e que me ia dar banho.
Na minha vida nunca precisei que pessoas estranhas me dessem banho. Não me sentia bem, tinha vergonha. A funcionária notando esse meu embaraço disse-me para estar tranquilo que era essa a sua missão. Fiquei agradecido e veio-me à memória que quando prestava serviço, encontro-me aposentado, se pedia a certas guardas femininas para fazerem uma revista mais minuciosa diziam que em certas partes não tocavam.
Nunca fiz um agradecimento público aos funcionários do IPO, aproveito esta ocasião, para lhes agradecer, desde o mais simples ao mais alto cargo, que ali presta serviço e que nunca percam o sentido de profissionalismo, é desta pessoas que o País precisa.

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