Rádio Freamunde

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segunda-feira, 14 de março de 2011

As Sete Curvas e o catorze de Março:



Dois itinerários principais atravessavam os Dembos. A partir do Caxito, que era a porta de entrada da guerra a Norte, a partir dali só se podia viajar com escolta militar. Um partia em direcção a Quicabo e Balacende. O outro itinerário era a “estrada do café” para o Úcua, Piri, Quibaxe, Quitexe e Carmona (Uíge). Nessa altura só passavam a tropa, algumas viaturas civis protegidas por essa mesma tropa e o inimigo mas, este nunca o avistávamos, caso contrário tínhamos luta pela certa.
 
 Fotografia aérea de várias localidades dos Dembos
O Quartel de Balacende ficava situado entre Quicabo e Beira Baixa, um lugar isolado, não tinha população, tinha próximo a Fazenda Margarido e Maria Fernanda, era servido como ponto de passagem pelas famosas sete curvas. Sete curvas, como eram apelidadas, pelas tantas curvas existentes num raio de poucos metros, com uns morros altos, que faziam perder a respiração a quem lá passasse.
Por essa altura a JAEA, Junta Autónoma de Estradas de Angola, laborava na construção da estrada que mais tarde ia ligar Caxito a Zala, estava próximo da Beira Baixa. As sete curvas deixaram de ser uma picada e passou a ser uma estrada asfaltada mas sempre um local de respeito. Deixou de haver as sete curvas, o traçado agora era em linha recta, os seus morros se eram altos, altos continuaram com o rompimento da dita estrada. Sempre que ali se passava, lembrava-nos das sete curvas que tanto sofrimento causou à tropa.
     Vista da entrada do Quartel de Balacende e Placa alusiva aos que tombaram em defesa da Pátria de uma companhia anterior à minha.

O dia catorze de Março de mil novecentos e setenta e três nasceu como tantos outros. De manhã levantei-me, tomei o pequeno-almoço no refeitório do Quartel, dirigi-me para o Posto-Rádio, como era costume. Não estava de serviço, só fazia serviço nocturno, que era das zero horas às oito da manhã. Como era habitual e dado vivermos isolados, a nossa distracção era ir até ali, falarmos das nossas venturas e desventuras, ajudar caso fosse preciso o nosso colega de transmissões, nesse dia quem estava de serviço diurno era o soldado Alves.
Estávamos a conversar quando de repente se ouve no rádio, Racal 422, que era o instrumento que nos ligava aos outros Postos de Transmissões e colunas que andavam por fora dos quartéis, estes pertencentes ao Batalhão de Caçadores 3838, que era o meu, a pedir socorro. O sinal auditivo era bastante baixo o que me levou a dizer ao soldado Alves que estava algum posto transmissor a pedir ajuda. Disse que não ouvia. 
De imediato peguei no microfone e comecei a chamar: ao posto que se encontra no ar informe o seu indicativo pausadamente condições audíveis bastantes difíceis. De repente ouvi melhor, pedia ajuda rápida, tinham caído numa emboscada. Perguntei-lhe qual a localização em que se encontravam ao que respondeu entre Quicabo e Balacende, na zona das antigas sete curvas.
Estava um pelotão prestes a partir com os trabalhadores da J.A.E.A., disse ao furriel que comandava o pelotão para irem em auxílio de uma coluna de soldados que tinham caído numa emboscada. Para irem com cuidado que não sabia a localização ao certo. Disse ao rádio telefonista para levar o rádio em escuta permanente para saber o que se ia passando.
O meu posto-rádio continuou a fazer “de posto-rádio em trânsito” uma vez que o posto director era Quicabo e, como não havia condições climatéricas, competíamo-nos tomar esse lugar. De manhã quase sempre nos víamos com estas dificuldades, diziam os entendidos, que eram devido a ser zona de minério. As condições tinham melhorado, o nosso pelotão tinha chegado à zona da emboscada e tinha disparado uns morteiros tendo-se o inimigo retirado.
Fez-se o balanço. Do nosso lado, tinham morrido um furriel, três soldados e dois civis e o soldado condutor auto-rodas, Damas, dado como desaparecido. Era uma coluna que ia para a J.A.E.A., com funcionários da mesma, para fazer pagamentos aos trabalhadores. Do lado do inimigo, mais tarde soubemos, que foi para comemorar o aniversário da U.P.A. (União Povos Africanos) “catorze de Março”, tiveram várias baixas.
Foi pedido ao comando em Luanda meios aéreos que prontamente bateram toda a área mas não se encontrou nenhuma vivalma. Parecia que havia esconderijos subterrâneos. Viemos a verificar que a emboscada tinha sido bem planeada. Na entrada e saída tinham metralhadoras, à medida que as nossas viaturas iam entrando nessa zona, era feito fogo cruzado. O furriel foi o primeiro a tombar, seguia na primeira viatura. Os soldados que compunham essa viatura assim como outras que também entraram nessa zona saltaram das viaturas para as valetas da estrada cobertas de ervas e arbustos. Quando ali chegavam estava um grupo de assalto com catanas. Foi morto um soldado à catanada.
Além do azar, podemo-nos dar por felizes porque as viaturas não entraram todas na zona da emboscada e assim puderam repostar ao fogo do inimigo e comunicar via rádio a pedir auxilio.
Não tínhamos conhecimento, nós soldados, desta data e celebração, quando assim é consiste em dia de festa, ou seja quase um dia de feriado e não um dia de luta. Foi terrível. Nunca supúnhamos tal tragédia uma vez que a nossa missão naquela zona estava a findar. No dia dezasseis partia de Balacende para o Grafanil, Luanda, o primeiro contingente de tropa no qual me incluía para aguardar embarque, dia três de Abril, para a Metrópole como era usual dizer-se. Fez no dia quatro de Maio de mil novecentos e setenta e três, vinte e dois meses, que para ali fomos.
Tínhamos sido referenciados num programa de rádio, chamado Maria Turra, como um Batalhão que cumpriu o seu dever nunca abusando dos direitos consagrados dos grupos de guerrilha, assim como deixávamos obra feita. As estradas asfaltadas, um aldeamento com cerca de duas mil pessoas, com habitação própria, umas capturadas, outras entregaram-se voluntariamente.
Por isso não éramos merecedores e não contávamos com este acontecimento. A guerrilha não se compadece com este estado de coisas. Todos os anos me lembro do catorze de Março de mil novecentos e setenta e três e das sete curvas. Faço-o em memória dos que tombaram e respeito pelos que foram feridos e em especial pelo Soldado Condutor Auto-rodas, Damas, que foi dado como desaparecido.
Mais tarde com a descolonização foi trocado como prisioneiro de guerra. Nunca mais o encontrei. Também sinto vergonha de o encontrar e ser-me dito que nada fizemos por ele. Pela minha parte vou-o lembrando e admirando o seu passado que deve ter sido horrível.
Por isso o lembrar do dia catorze de Março de mil novecentos e setenta e três como um dia triste na minha memória.      

4 comentários:

  1. deixa lá isso: ao estares a partilhá-la estás a espantar a tristeza e a dar alegria. :-)

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  2. Boa noite senhor manuel pacheco posso ajuda-lo a reencontrar o Soldado DAMAS se isso ainda nao aconteceu .

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  3. deixo-le o meu email alves7@hotmail.fr o soldado damas é meu familiare e penso que ele gostaria de reencontralo.

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  4. Fui Alf. Op.Esp. da C.Caç.2600 do Bat.Caç.2887 - a Placa da foto diz respeito aos que cairam da minha Companhia- foi o meu G.C. que vos deu proteção nas 7 Curvas quando chegaram, transportados em viaturas civis com taipais. Sempre tivemos muito respeito pelas 7 Curvas tendo Também sofrido uma emboscada que durou cerca de 20 minutos, mas que milagrosamente só nos provocou um ferido. A v/ emboscada com a ida á picada pelos FNLAs deve ter sido feita por um grupo intinerante, fortemente armado e que tinha a info. (via Caxito) que era o v/ ultimo dia operacional na zona, contando com algum á vontade das NT
    Cumprimentos
    Eduardo J.Reis Lopes

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