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sábado, 24 de junho de 2017

O essencial e o marginal:

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 24/06/2017)

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                                 Miguel Sousa Tavares
1 Já se ouviram todos ou quase todos os especialistas, já se fizeram todas as perguntas, já se levantaram todas as questões e, embora não haja ainda respostas, já foram ensaiadas várias desculpas. Não temos, para já, certezas algumas: é cedo demais, como todos dizem, mas não sei se não será sempre cedo demais. Como de costume. Mas não me parece muito arriscado dizer, como disse logo o jornal “Público”: “O que falhou? Falhou tudo, como sempre falha”.
Pena que não tenhamos, como os ingleses, a tradição de nomear uma pessoa consensualmente respeitada, para, podendo dispor de todos os meios necessários e ter acesso a tudo o que requerer, dirigir uma comissão de inquérito que, num prazo adequado e improrrogável, apresentasse conclusões e recomendações obrigatoriamente acatadas pelo Governo e demais organismos públicos. Alguém que forçosamente ouvisse a opinião qualificada dos especialistas e técnicos mas cuja autoridade decisória decorreria de si mesmo e estaria acima da deles.
Tal pessoa começaria por indagar por que razão os laboriosos estudos levados a cabo sobre a prevenção e combate aos fogos jazem nas gavetas ministeriais, anos a fio, sem serem implementados, medida a medida e segundo um calendário de execução como que a troika impôs ao governo de então. Indagaria as razões da moleza da Assembleia da República na promoção do debate e votação das sete propostas de reforma florestal, que o Ministério da Agricultura e o BE apresentaram já há quatro meses, para que se começasse a actuar em algumas das medidas antes e não depois da época de incêndios. Indagaria também por que razão tendo o Governo Regional da Madeira, na sequência do imenso incêndio sobre o Funchal no Verão passado, pedido ao Governo de Lisboa um estudo sobre a possibilidade de utilização de meios aéreos no combate aos incêndios na ilha, tendo em conta a orografia da Madeira, esse estudo só agora tenha sido entregue, concluindo que sim mas que vão ser precisos mais 60 dias para um grupo de trabalho estabelecer os pormenores e organização dessa empreitada — ou seja, para depois da época de incêndios.
A seguir viriam as perguntas escaldantes: se não é possível extrair consequências, financeiras, civis, criminais, do escândalo dos sucessivos falhanços do SIRESP — um dos grandes negócios ruinosos levados a cabo pela gente de negócios do PSD, durante governos do PSD? Por que razão se quis acabar com o corpo de sapadores, diminuir o número de vigilantes e guardas florestais para poupar dinheiro (gastamos 78 milhões por ano com a prevenção e combate aos fogos, mas gastámos 5 mil milhões, até à data, com essa organização de malfeitores chamada BPN, 3 mil milhões com esse banco de vão de escada chamado Banif, ou 600 milhões com o tal SIRESP, que deixa as entidades envolvidas sem comunicações em situações de crise)? Por que razão o grosso do dinheiro gasto com os incêndios vai para o combate (onde estão os grandes negócios de compra e aluguer de material), e ficam migalhas para a prevenção — como se demasiada e eficaz prevenção estragasse o negócio de alguns? E, apesar de tudo, como explicar que, com dois mil bombeiros no terreno, GNR e forças militares, 30 aviões e helicópteros no ar, ajuda de Bruxelas, de Marrocos, da França, da Espanha, já sem trovoadas secas, downbursts no ar ou outras condições excepcionais, ao fim de cinco dias o incêndio ainda não tinha sido dominado? Por que razão tanto a ministra como o PM insistem tanto na colaboração tripartida das responsabilidades pela prevenção e combate ao fogos, recusando um comando único, coordenando e chefiando todas as entidades envolvidas? Não poderíamos ter um ministro só para os incêndios, que não tivesse de se ocupar também da polícia e das fronteiras, ou um comissário para os incêndios, cujo trabalho durante o ano inteiro seria só esse: ver como estava a prevenção, preparar o combate? A falta de um comando unificado, aliado às falhas de transmissões, não teve um papel determinante na dimensão da tragédia?
E, enfim, a mais escaldante e a mais urgente das perguntas: até quando serão mais importantes os interesses financeiros do sr. Pedro Queiroz Pereira ou do sr. Paulo Fernandes do que os interesses do país? Fomos até ao limite do absurdo, do criminoso, no crescimento da área de eucaliptos plantada ao longo das últimas décadas, num misto de ignorante irresponsabilidade com cínica cumplicidade. Em termos proporcionais, somos o país do mundo com maior área plantada e de uma espécie que nem sequer é endógena. Demos dinheiro e incentivos para que as populações abandonassem a agricultura e a pastorícia e os campos assim abandonados fossem ocupados pelas empresas de celuloses (significativamente, chegámos a ter um ministro da Agricultura que saiu directamente do Governo para a presidência da maior empresa de celuloses à época). E, juntamente com o eucalipto, ainda andámos a distribuir dinheiros europeus para a outra espécie predadora dos terrenos e altamente inflamável, que é o pinheiro-bravo — uma árvore que não serve rigorosamente para nada, a não ser para abastecer a indústria do papel. É urgente mudar drasticamente de política florestal: não basta o congelamento agora decretado até 2020 da área de eucaliptos. É preciso começar a diminuí-la —– com agravamentos fiscais, com regras que proíbam grandes áreas de povoamento contínuos, com a reversão de todas as autorizações concedidas em áreas de Reserva Agrícola ou Reserva Ecológica. E é preciso explicar aos pequenos proprietários que a aposta no crescimento rápido e lucro rápido que o eucalipto e o pinheiro bravo proporcionam, paga-se depois, às vezes perdendo tudo o resto.

Quanto às grandes empresas de celuloses, deixem-nas ameaçar à vontade: elas não têm para onde ir porque nenhum país do mundo lhes consentiria o que aqui lhes foi consentido. Elas destroem muito mais empregos do que aqueles que criam. Elas saem muito mais caras ao país do que os lucros que registam na balança comercial.

2 Durante mais de uma hora, na quarta-feira, a RTP, a TVI, a SIC, a Lusa (e talvez mais meios que não segui) deram como certa a queda de um avião de combate aos incêndios, apesar de não terem qualquer confirmação oficial, apenas uma pretensa notícia da Lusa que invocaria fonte (não identificada) da Protecção Civil. Mais: no posto de comando de Pedrógão, a única fonte oficial interrogada sobre o assunto, o secretário de Estado da Administração Interna, afirmou que a notícia estava a ser investigada com meios enviados ao local referenciado, mas que não era ainda possível confirmar a sua veracidade. Que fizeram as televisões? Em vez de tentarem também confirmá-la por outros meios ou esperar pela confirmação oficial, deram-se por satisfeitas com o que tinham, assumiram como indiscutível uma notícia não confirmada por autoridade ou testemunho presencial algum e, mesmo com a televisão espanhola já a desmentir a notícia, continuaram a insistir nela contra o “silêncio” das autoridades. E quando estas, enfim, falaram (depois de terem apurado o que sucedera, conforme deviam), para dizer que não tinha caído avião algum, os jornalistas revoltaram-se porque teriam sido levados ao engano pelo silêncio das autoridades! Autênticos editoriais feitos em directo reclamavam, como se de crime se tratasse, que nenhuma autoridade tivesse desmentido uma notícia… que nenhuma autoridade tinha dado ou confirmado — nunca tendo passando, pois, de um boato. Além da, desculpem-me, falta de profissionalismo demonstrado, a sensação que ficou para um espectador atento é que houve também uma grande frustração por não ser possível acrescentar tragédia à tragédia. Mas vi, com satisfação, que outros da minha geração de jornalistas (José Manuel Barata-Feyo, José Ferreira Fernandes), ficaram tão indignados com o que viram quanto eu. É verdade que já estamos fora de jogo ou quase, mas se o jogo agora é assim, ainda bem.

(Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia)

Do blogue (Estátua de Sal)

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