Neste dia 24 de abril, lembrei-me de reeditar um post antigo.
“Ao ler que a Santos Júnior, polícia-mor de um dos períodos mais
sinistros da ditadura, foi atribuído o nome de uma rua em Coja (se fosse em
Corja, não me admirava), dei comigo a pensar se, de facto, não seria justo,
para cultivo de uma certa memória afetiva, ser criada, algures no nosso país,
uma cidade que tivesse o nome de Ontem.
Para aí irem viver poderiam ser
convidados, em prioridade, todos quantos, nas redes sociais e nas caixas de
comentários dos sites e jornais, permanecem fiéis a um saudoso passado em que,
pelos vistos, se sentiam tão felizes. Mas muitos outros seriam elegíveis, como
se intui em colunas de jornais e até em certas tribunas políticas residuais. Em
Ontem, o Diário da Manhã e o Novidades dariam, ao alvorecer, as notícias a que
os seus cidadãos tinham direito - mas nem mais uma, ou, então, "factos
alternativos", como fazem as relações públicas de Trump! E iríamos vê-los
felizes, cara ao sol, sentados na esplanada do Café do Aljube, com vistas para
a Praça do Tarrafal (no centro da praça, em dias de calor haveria um lugar a
que chamariam "frigideira"), à qual se acederia pela grande Avenida
Oliveira Salazar, de sentido único, que, lá bem ao fundo, conduzia ao Beco
Américo Tomaz (com Z). No Centro Social Silva Pais, não muito distante, ouvir-se-ia
a Emissora Nacional que os "senhores óvintes" quisessem,
obrigatoriamente abrindo com "Uma Casa Portuguesa" ("a alegria
da pobreza está nesta grande riqueza de dar e ficar contente"). Na Alameda
Barbieri Cardoso, ficaria a Livraria Lápis Azul, que só venderia livros
rigorosamente conformes aos cânones do antigo e benquisto regime, sendo de todo
excluídos aqueles em que as palavras "liberdade",
"democracia" e "povo" pudessem surgir. Em Ontem, Pide seria
o nome de uma associação de beneficência, com o Centro de Artes
"Estátua", recuperando a tradição de uma instituição com uma benéfica
ação que tão deturpada tem sido - embora, felizmente, já haja por estes dias um
grupo dedicado de rapazes da historiografia que começa a tentar mudar tais erróneas
perceções. O fotógrafo oficial da cidade de Ontem, um tal Rosa Casaco, faria os
retratos à maneira, de preferência um "photomathon" com frente e duas
laterais, numa moda estética lamentavelmente caída em desuso. E, por falar em
"casaco", iria ser com certeza um sucesso o alfaite o local, o
conhecido "Vira Casacas", que tanto trabalho tinha tido no 25 de
abril. Perguntará o leitor: E a Justiça? E a Saúde? Quem assistiria nesses
domínios os habitantes de Ontem? A Justiça, ora essa!, estaria a cargo dessas
vestais do direito que eram os juízes dos Tribunais Plenários! E a Saúde, essa
não poderia ficar em melhores mãos do que de esses dignos seguidores de
Hipócrates que eram os médicos do Tarrafal, de Peniche e de Caxias. Mas não se
fala da Educação? Não, porque em Ontem ela não seria necessária, orgulhosa do
analfabetismo sadio que outrora imperava. E, sejamos óbvios, os que fossem
educados só por engano é que iram viver para Ontem. Resta a ordem pública? Nem
por isso! Bastava ficar por lá o capitão Maltez (nunca percebi porque nunca foi
promovido, ou, se calhar, foi, depois do 25 de abril e ninguém nos avisou) e
nem uma agulha bulia na serena melancolia da paz dos cemitérios. Ah! E, em
Ontem, haveria também uma Colónia de Férias (então eles passavam lá sem ter uma
coloniazita...). Pela certa, finalmente, a cidade não enjeitaria uma geminação
com Santa Comba ou com a angolana São Nicolau, porque há memórias que calam
fundo - e calar é algo que Ontem saberia sempre fazer. Um ponto muito
importante seria permitir que os cidadãos pudessem sair de Ontem sempre que
lhes apetecesse. Não há, porém, a certeza de que isso, necessariamente, lhes
agradasse, porque a liberdade é, no fundo, aquilo que eles menos apreciam.
Enfim, Ontem é, talvez, o futuro que alguns desejariam. Por que não fazer-lhes
a vontade? Será que para a criação desta urbe da saudade se arranja,
finalmente, uma maioria decente na Assembleia da República?.”
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