Não me recordo de ter assistido, em democracia, a tão repugnante
entrega do papel do jornalista a procuradores e juízes.
Só a impunidade soprada pelos ventos de populismo que assola a Europa
pode explicar o que tenho ouvido e lido como defesa da “grande reportagem” da
SIC construída com base nos filmes dos interrogatórios dos arguidos do processo
Operação Marquês. Não encontro outra explicação. E o que vejo assusta-me.
Vamos por partes.
1. A tal “grande reportagem” que a SIC montou com a divulgação dos
filmes dos interrogatórios tem zero de investigação própria e nada de factos
novos. O seu roteiro segue o discurso da acusação e a dita reportagem não é
mais do que a ilustração dos milhares de páginas em que aquela se deu a
conhecer. Ou melhor dizendo: os milhares de páginas impressos como certificado
de tudo quanto sobre o caso já tinha sido tornado público pela via de
flagrantes e repetidos atropelos ao segredo de justiça.
A suposta reportagem da SIC, entre outros atropelos éticos que não vêm
agora ao caso e que não têm que ver com o segredo de justiça, rebaixa-se ao
hediondo de substituir o preceito deontológico de “ouvir todas as partes com
interesses atendíveis na matéria” pelos filmes em que os arguidos respondiam ao
interrogatório policial. Ou seja, para simular que respeitava aquele dever
deontológico, a SIC “foi ouvir” os acusados defenderem-se das acusações por ela
lidas e ilustradas a partir do texto da acusação através... do próprio
interrogatório a que foram submetidos! Não me recordo de ter assistido, em
democracia, a tão repugnante entrega do papel do jornalista a procuradores e
juízes. Total confusão de papéis, completa mistura de planos e violação
declarada dos deveres para com os acusados e para com o público. Não estou a
falar de lei, estou a falar de deontologia jornalística.
Divulgar à exaustão e sob a capa de peça jornalística imagens captadas
durante interrogatórios só pode resultar da procura de audiência a todo o custo,
ou da vontade de incentivar o desejo de realizar justiça pelas próprias mãos.
2. Pior do que esta “grande reportagem” com guião e imagens extraídos
dos processos realizados por quem conduziu a investigação foi o desagrado que
ela provocou na atual procuradora-geral da República. “Desagrado?” — senhora
procuradora!... Claro que a ouvimos também dizer que vai mandar instaurar novo
inquérito, mas essa parte era para rir, não é verdade? Quantos inquéritos já
mandou instaurar desde que este folhetim da Operação Marquês começou?
Nomeadamente os relativos aos crimes de violação do segredo de justiça que
continuam e continuarão impunes. Alguém foi demitido, suspenso, ou incomodado?
Não continuam procurador e juiz titulares da investigação impávidos e serenos sem
se deixarem afetar pelos recorrentes crimes em que o seu trabalho se viu
envolvido? O crime desagrada-lhe, senhora procuradora? Então, quando o condena
(se foi isso que fez...), não faça logo a injunção para a necessidade de todos
os operadores judiciários repensarem comportamentos nesta matéria. Ou
caminhamos para regulação e legislação retroativas, esponjas branqueadoras de
comportamentos imperdoáveis do aparelho que dirige?
Mas nesta tragédia de levezas alegretes à portuguesa, as cenas dos
próximos episódios ainda seriam mais negras. Como quase sempre nos media
portugueses, em que o que falta em matéria de informação sobra em opinião, boa
parte desta veio mostrar que afinal estava tudo certo. Que a luta contra a
corrupção, o desmascarar das trapaças dos poderosos, ou o interesse público se
sobrepunham a tudo e a todos.
3. Sabemos quanto a corrupção de altos responsáveis políticos,
empresariais, financeiros, académicos e culturais é um dos principais cancros
da sociedade portuguesa e da nossa vida democrática. A Operação Marquês
investigou a corrupção ao mais alto nível. Mas não há importância ou
singularidade de um processo judicial que suspenda todos os direitos dos
investigados, confira exceção absoluta de procedimentos legais, substitua os
tribunais pelo julgamento popular, dispense a prova por existir convicção.
Estes são os fundamentos do populismo que, como é sabido e é tristemente
patente nesta Europa a que nos deixámos chegar, opera sempre do mesmo modo:
escolhe e denuncia impasses políticos verdadeiros e problemas sociais reais;
explica-os através de origens deturpadas e razões falsas; e propõe-se
resolvê-los através de medidas radicais, excecionais e antidemocráticas.
Sorrateira ou explicitamente, são estes pressupostos que baseiam boa
parte da opinião publicada a favor da “grande reportagem” da SIC. Não, não há
nenhum “interesse público” que justifique a difusão das imagens dos
interrogatórios. As expressões dos arguidos em interrogatório, o conteúdo do
que ali dizem e o modo como se exprimem nada provam, nem são factos relevantes
no apuramento da verdade. Só quem nunca foi sujeito a interrogatório por parte
daqueles que lhe retiraram a liberdade pode supor que essa é uma situação
“normal”. Mas, mesmo não a tendo vivido na pele, deve perceber que nesse
contexto absolutamente excecional ninguém é como é. E, sobretudo, que ninguém
naquela situação se preocupa com a sua eventual performance perante as câmaras.
De resto, o populismo reinante opera também esta “confusão” entre duas coisas
bem distintas: o que são as provas aduzidas pela acusação e o que são factos
provados em tribunal. Nada se encontra definitivamente provado antes de este se
pronunciar, ouvida a defesa e avaliadas as provas por ela apresentada. Phil
Graham daria uma volta no túmulo se alguém lhe traduzisse a glosa portuguesa da
sua célebre frase [1] que parece ter cristalizado neste desastre: “Os tribunais
trabalham para a história, os jornalistas para o momento”!
4. Duas coisas são certas. A primeira, pouco importante e de nível
pessoal: se alguma vez for sujeito a investigação policial, exigirei uma
máscara antes de responder a quaisquer perguntas que me queiram fazer. Não
quero correr o risco de me ver envolvido nestas cenas degradantes. A segunda,
mais decisiva: a luta contra a grande corrupção em Portugal acaba de dar um
gigantesco passo atrás. E, para o seu recuo, mais do que a desastrosa “grande
reportagem” da SIC, contribuíram os seus alegretes defensores, exultantes com a
pornográfica exibição das “provas” que reforçam as suas convicções. Minar a
administração da Justiça sobrepondo-lhe o julgamento popular, substituir a prova
pela convicção e retirar à vida democrática os procedimentos formais que também
a caracterizam — aí está toda uma agenda para o sólido desenvolvimento do
populismo à portuguesa.
ORGE WEMANS
ORGE WEMANS
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico
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